Carlos Marchi
Há 40 anos, na tarde/noite da sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, sentados à mesa de jantar do Palácio das Laranjeiras, sede da Presidência da República no Rio, 25 membros do Conselho de Segurança Nacional - 15 militares e 10 civis - aprovaram o Ato Institucional nº 5 (AI-5), numa reunião que durou 2 horas e 10 minutos. O ato foi sugerido pelo próprio marechal-presidente Artur da Costa e Silva, sentado à cabeceira, e serviria para legalizar o arbítrio. Só um daqueles 25 homens votou contra, o vice-presidente Pedro Aleixo, embora estivessem na sala outros brasileiros de reconhecida tradição democrática.
Os atos institucionais vinham desde o começo do regime militar, em 1964. Eram leis que não passavam pelo Congresso. Os primeiros traziam um certo verniz de democracia, mas o AI-5 escancarou a ditadura. Nele, o marechal-presidente tinha poderes ilimitados. Podia legislar, cassar parlamentares e fechar o Congresso; suspender direitos políticos; mandar prender pessoas sem autorização judicial; nomear quem quisesse para governar Estados; censurar a imprensa para impedir a publicação de notícias que desagradassem ao governo, fosse uma crítica oposicionista ou um inesperado surto de meningite.
O Brasil daquela época tinha outra cara. Éramos mais de 90 milhões em ação estreitamente vigiada: só podíamos ouvir, ler, ver ou dizer o que o regime permitia. Os militares promoviam um culto exacerbado dos símbolos nacionais. A moeda se chamava cruzeiro novo, Pelé ainda jogava e nem tinha marcado o milésimo gol; as baladas eram chamadas de "bailinhos", banhados a luz negra, e as meninas compareciam com bem penteados cabelos longos. Não havia cerveja ou refrigerante em lata; os carros da moda eram Fusca, Gordini e Aero-Willys. O computador pessoal ainda estava em testes e a internet não passava de um embrião de restrito uso militar, nos Estados Unidos. Ainda bem, para os militares linha-dura que conceberam o AI-5: como teriam feito para censurar a rede mundial de computadores?
Inspirada por modelos revolucionários - de Cuba ao Vietnã -, a esquerda radical encantou os estudantes com a utopia da luta armada. Mas havia outros estímulos para o confronto. O mundo vivia o apogeu da guerra fria, que criou um planeta maniqueísta, dividido entre EUA, à direita, e União Soviética, à esquerda. Se um era o bem, o outro representava necessariamente o mal - e isso se reproduzia no Brasil. Os estudantes também se empolgaram com o Maio de 1968, rebelião estudantil que começou reivindicando uma reforma universitária e acabou incendiando a França.
Nos primeiros meses de 1968, a escalada contra a ditadura chegou ao auge. Explodiu em março com a morte - num confronto com a polícia, no restaurante do Calabouço, no Rio - do secundarista Edson Luís de Lima Souto, cujo corpo foi transformado em ícone da luta política e mereceu um enterro-passeata com 50 mil pessoas. As ruas foram ocupadas nas principais capitais por sucessivas manifestações contra o regime, que perdia celeremente o apoio da classe média, conquistado no golpe contra o presidente constitucional João Goulart, quatro anos antes. Os dois extremos passaram a se retroalimentar - os estudantes protestavam, o regime endurecia. Espremidas entre os extremos, a esquerda democrática e a direita liberal perdiam espaço, embora a Passeata dos 100 mil, em junho, tivesse revelado que a oposição ao regime era bem maior que a esquerda radical e os estudantes.
A linha dura militar buscava pretextos para fechar de vez o regime. O motivo ideal se revelou num discurso tão despretensioso quanto inconseqüente do deputado Márcio Moreira Alves (MDB da Guanabara), de 32 anos. Às vésperas do 7 de Setembro, ele apelou da tribuna da Câmara para que as moças não namorassem jovens oficiais. O governo militar quis processá-lo, mas a Câmara negou a licença. A resposta foi o AI-5.
O Ato nº 5 devastou a vida política e cultural brasileira. Com base nele, 1.577 cidadãos foram punidos - 454 perderam mandatos políticos ou tiveram os direitos políticos suspensos, inclusive 3 ministros do Supremo Tribunal Federal; 548 funcionários civis foram aposentados, 334, demitidos e 241 militares, reformados. As Assembléias dos Estados da Guanabara e do Rio, então separados, São Paulo, Pernambuco e Sergipe foram postas em recesso. Foram proibidos mais de 500 filmes e telenovelas, 450 peças teatrais, 200 livros e 500 letras de música; o Estado e a Tribuna da Imprensa, que não admitiram censura prévia, receberam censores nas oficinas.
O AI-5 foi extinto em dezembro de 1978. O regime não sobreviveu muito tempo sem ele. Seis anos e um mês depois, ensarilhou armas e devolveu o poder aos civis. Dezesseis anos mais tarde, um dos punidos pelo AI-5 - o exilado Fernando Henrique Cardoso, que em 1968 foi aposentado da Universidade de São Paulo e teve os direitos políticos suspensos por 10 anos - chegaria à Presidência da República. Seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, amargara 31 dias de cadeia em 1979. Lula, por sua vez, poderá legar o poder a uma terceira vítima da ditadura. Os dois presidenciáveis mais destacados hoje são José Serra, presidente da UNE cassado em 1964, e Dilma Rousseff, militante da guerrilha, presa em 1970. Se um deles vencer, vítimas da ditadura terão ficado no poder 20 anos, exatamente o período que durou o regime criado pelo golpe de 1964.
fonte :jornal estadão
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