quarta-feira, 3 de junho de 2009

O pequeno jornaleiro na memória de sua casa

Viktor Chagas · Rio de Janeiro (RJ) · 19/12/2008 11:39


Quem ouve este grito logo associa à notícia bombástica dos jornais. E logo vem à cabeça o dedicado jornalista investigativo, o ethos quase fardo que o acompanha, escrevendo e suando em bicas com o bafo do editor-chefe no cangote. Plantão até duas, três horas da manhã, para fechar a maldita manchete. Os mais televisionados lembram sempre do jingle global assustador.

Extra! Extra!

Mas o que pouca gente sabe é que este grito nasceu nas mãos (melhor, nas goelas!) dos pequenos jornaleiros. Eles é que liam em alto e bom tom as manchetes do dia, na esperança de que os passantes comprassem aquela edição.

Os pequenos jornaleiros eram meninos, crianças e jovens (na maioria absoluta meninos), que iam às ruas como vendedores ambulantes de jornais. Os que subestimam a profissão pouco sabem sobre a fatídica greve que os "newsboys" americanos fizeram em 1899, deixando a cidade de Nova Iorque sem distribuição de notícias e o trânsito bastante bagunçado. O resultado foi que o repasse nas vendas dos jornais para os pequenos distribuidores subiu.

No Brasil, os jornaleiros surgem como ambulantes - eram negros escravos que vendiam as manchetes nas ruas - e só mais tarde é que um imigrante italiano chamado Carmine Labanca cria, com caixotes de madeira, a primeira "banca" de jornais (note que o termo que usamos para designá-la é devido ao sobrenome de Carmine). Daí para diante, os italianos meio que dominaram os negócios e, num primeiro olhar, quando a então primeira-dama Dona Darcy Vargas cria a Casa do Pequeno Jornaleiro, na Gamboa, bairro no Centro do Rio próximo às sedes dos antigos jornais do distrito federal, é possível que eles não tenham gostado muito da concorrência.

Mas a verdade é que, hoje, a Casa do Pequeno Jornaleiro, projeto mantido pela Fundação Darcy Vargas, é a grande obra social da categoria, como bem lembra Dona Edith Vargas, atual presidente da fundação e neta de Getúlio e Dona Darcy.

A Casa do Pequeno Jornaleiro foi criada em 1940, como um dos principais (hoje o único) projetos da Fundação Darcy Vargas, entidade filantrópica criada pela primeira-dama e que, após a morte de Getúlio, ganhou dela sua dedicação exclusiva. A idéia era oferecer abrigo aos menores, que, na época, estavam se tornando um problema social na capital federal, pois na esperança de obter mais exemplares das publicações diretamente das distribuidoras dos jornais, perambulavam pelo Centro e dormiam nas ruas. Assim, a proposta da primeira-dama era não só tirá-los das ruas, como também dar-lhes uma ocupação no restante do dia, com aulas e cursos profissionalizantes que não conflitassem com os horários da profissão.

Mas aí veio o Estatuto da Criança e do Adolescente. - E é claro que o estatuto foi só a gota d'água. A sociedade civil se inclinava cada vez mais para a erradicação de todas as formas de trabalho infantil. Acaba que, diante disso, os pequenos jornaleiros foram rareando, rareando, até sumirem. A Casa do Pequeno Jornaleiro, de pequeno jornaleiro, tem apenas o nome. Suas atividades foram também todas reformuladas. O objetivo, hoje, é garantir um horário de reforço escolar e atividades complementares para jovens e crianças (incluindo meninas) da região. Além de disciplinas como português e matemática, há aulas de informática, mecânica, corte e costura, jardinagem, educação física, artes, dança e até um coral. Tudo de graça, para os alunos matriculados.

O foco da Casa do Pequeno Jornaleiro são "jovens em situação de risco social", como define Dona Edith, há já 15 anos no comando da Fundação Darcy Vargas. Na área da Gamboa, Saúde e Santo Cristo - bairros do Rio -, são cerca de 13 escolas públicas. Os jovens matriculados na CPJ somam cerca de 300, divididos em dois turnos. Eles recebem três refeições diárias e, a depender das parcerias com outras instituições, os melhores alunos podem receber uma bolsa simbólica para ajudá-los com despesas de estudos e deslocamento.

Ainda que a profissão só figure no nome, os jornaleiros continuam sendo a principal fonte de renda da CPJ. No decreto original de Vargas regulamentando a atividade dos donos de bancas, de cada exemplar encaminhava-se 5% do valor de capa para a obra assistencial. Hoje, este percentual não ultrapassa 0,3%, mas mesmo assim garante a continuidade do projeto.

Francisco José Vogt, superintendente da Fundação Darcy Vargas, me conta que gostaria que houvesse planos para que a CPJ fosse divulgada em banners expostos nas próprias bancas, mas que para isso talvez precisasse haver um esforço conjunto da instituição com os jornaleiros. Quem sabe mais no futuro? O presidente do sindicato dos jornaleiros, Francisco Scofano, é membro do conselho fiscal da Casa do Pequeno Jornaleiro e o apoio da categoria é irrestrito. Transformar a potencial concorrência que representava o abrigo para pequenos jornaleiros na principal obra social legada pelos profissionais é, sem dúvida, um trabalho de memória notável.

A Casa do Pequeno Jornaleiro, "um oásis no Centro do Rio", como define Divaldo, seu diretor (com o que concordo sobretudo pelo ar bucólico da entrada dos fundos, com um chafariz à Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal) ainda vive muito - a começar pelo nome - de sua história. Os pequenos jornaleiros uniformizados e o quarto de Dona Darcy sobrevivem apenas no brevíssimo museu organizado numa das salas da edificação. Há um tempo, havia ali a reconstituição precisa do quarto de Darcy Vargas, mas o ar personalista foi substituído por uma exposição que retrata os primeiros tempos da casa, sem esquecer de sua fundadora. Um quartinho de memórias, quase como se quarto de fundos fosse. Pergunto se há possibilidade de que alguém de passagem visite aquela exposição por ali. E ouço um "E quem é que vai passar aqui para visitar a exposição?" Melhor seria se houvesse uma exposição itinerante, ou se a Casa do Pequeno Jornaleiro assumisse também ares de museu. Mas, para isso, seria preciso modernizá-la em muitos sentidos. É o paradoxo das casas de memória.

Mas o que mais chama a atenção na minha visita é a forma como Getúlio é eclipsado diante da figura idílica de Dona Darcy - sempre referenciada desta forma como a chamo. Quando estávamos reunidos, batendo papo no gostoso café da tarde ("O único pagamento que recebemos aqui", lembra Divaldo), ouço falarem de como é massante a Voz do Brasil todos os dias na rádio. Mas a surpresa não é nada se comparada com o momento em que Edith Vargas fala sobre os primórdios da Casa do Pequeno Jornaleiro, quando o projeto sofre com os olhares de empresários que achavam que aquilo era "coisa do presidente", e aí ela pára e segue: "ou ditador, como se queira". Não foi preciso que eu abrisse a boca para atacar ou defender a sua "dinastia", ali o legado a ser protegido não era o do homem que saiu da vida para entrar para a história, mas o da mulher, que de certa forma, saiu da história para entrar na vida. Fico pensando num eventual pequeno jornaleiro gritando nas ruas a manchete daquele fatídico 24 de agosto...



VIKTOR CHAGAS.

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