domingo, 6 de março de 2011

A maior desgraça



05.03.2011
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18h59m
Política

Enviado por Ricardo Noblat -
Mino Carta, CARTA CAPITAL:

Escrevi certa vez que se Ronaldo, o Fenômeno, se postasse na calada da noite em certas esquinas de São Paulo ou do Rio, e de improviso passasse a Ronda, seria imediata e sumariamente carregado para o xilindró mais próximo. Digo, o mesmo Ronaldo que foi ídolo do Brasil canarinho quando adentrava ao gramado. Até Pelé, creio eu, nas mesmas circunstâncias enfrentaria maus bocados, embora se trate de “um negro de alma branca”.

Aí está: o protótipo do preto brasileiro, o modelo-padrão, está habilitado a representar e orgulhar o Brasil ao lidar com a redonda ou ao compor música (popular, esclareça-se logo), mas em um beco escuro­ será encarado como ameaça potencial.

Muitos, dezenas de milhões, acreditam em uma lorota imposta pela retórica oficial: entre nós não há preconceito de raça e cor. Pero que lo hay, lo hay. Existem provas abundantes a respeito e a reportagem de capa desta edição traz mais uma, atualíssima. Na origem, obviamente, a escravidão, mal maior da história do Brasil.

Há outros, está claro. A colonização predatória, uma independência sequer percebida pelo povo de então, uma república decidida pelos generais, avanços respeitáveis enodoados por chegarem pela via da ditadura de Vargas. E o golpe de 1964, último capítulo do enredo populista comandado por uma elite que, como diz Raymundo Faoro, quer um país de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem povo. Enfim, um esboço de democratização pós-ditadores fardados ainda em andamento.

A desgraça mais imponente são, porém, três séculos de escravidão e suas consequências. A herança da trágica dicotomia, casa-grande e senzala, continua a determinar a situação do País, dolorosamente marcada pela desigualdade. Há quem pretenda que o preconceito à brasileira não é racial, é social, mas no nosso caso os qualificativos são sinônimos: o miserável nativo não é branco.

A escravidão vincou profundamente o caráter da sociedade. De um lado, os privilegiados e seus aspirantes, herdeiros da casa-grande, e os empenhados em chegar lá, e portanto ferozes e arrogantes em graus proporcionais. Do outro lado, a maioria, em boa parte herdeira da senzala, e portanto resignada e submissa.

De um lado uma elite que cuidou dos seus interesses em lugar daqueles do País, embora o Brasil represente um patrimônio de valor inestimável, de certa forma único. Do outro, a maioria conformada, incapaz de reação porque, antes de mais nada, tolhida até hoje para a consciência da cidadania.

fonte: JORNAL O GLOBO

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